quarta-feira, julho 16, 2008

Um professor e seu lugar

Um professor e seu lugar - Francisco Carlos Orlandini.

Publicado em "Retratos da sala de aula", organizado por José Renato Polli e Márcio Martelli - Jundiaí - SP: Editora In House, 2007.

Para escrever sobre minha experiência em sala de aula vou pensar sobre o que se passou nesse tempo, ainda que evitando os elementos, digamos, institucionais. Por isso não vou tratar aqui diretamente da expansão do ensino superior, da infinidade de cursos e escolas ou ainda do batalhão de novos alunos a cada período letivo, embora eles acabem interferindo no dia a dia do professor, como procuro deixar claro mais adiante. Ao invés disso vou contar sobre o que tenho visto nesse ambiente de trabalho, procurando me situar como parte dele.

Não é das coisas mais fáceis definir o modo de contar uma estória, principalmente quando ela descreve uma nova experiência. Lembro que naquela época também achei o começo difícil, muito difícil; não só pelo fato de que, de repente, me colocaram diante de quase cem pessoas, ou talvez por isso mesmo, por estar certo de que tinha muita coisa para dizer a elas e que todos estavam ali para me ouvir. Acho que não preciso dizer que as coisas não saíram exatamente como eu esperava. Hoje, quando me lembro daquela situação, fico impressionado tanto com a minha certeza de que estava conduzindo aqueles alunos para uma experiência enriquecedora, como também com a minha convicção de que era isso que os alunos entendiam e queriam. Ainda me pergunto sobre o aprendi desde então.

Talvez uma boa parte desse tempo tenha servido para a olhar de outra forma para a o trabalho em sala de aula, mais especificamente questionando se aqueles alunos tinham mesmo o interesse que pensei adivinhar e se desejavam todo aquele meu esforço. Demorei a perceber a diferença que já naquele momento existia entre o caminho que eu e muitos de meus colegas fizemos e o que era aquele ambiente onde trabalhávamos. Isto é, a distancia entre um estudante que se dedica quase que exclusivamente à universidade e aquele que se prepara para as aulas no intervalo do horário de trabalho ou depois que os filhos foram dormir.

A percepção de que o ambiente onde eu me iniciava como professor não correspondia exatamente a aquele de onde eu havia saído, não foi suficiente para compreender o que se passou depois, embora tenha sido fundamental. Foi ficando claro que eu não iria reproduzir um caminho já feito, mais do que uma questão de estilo, o próprio jogo foi se transformando ao longo desse tempo.

Acredito que parte dessa mudança é resultado da maneira como cresceu a oferta de vagas nas escolas e o ambiente da sala de aula passou a refletir esse fenômeno. A faculdade tornou-se uma realidade para muito mais gente que antes, alcançando pessoas cujas estórias de vida foram redefinidas por esse contexto em transformação. Ao lado daqueles que conseguiram dar continuidade à formação profissional, outro tanto retomou os estudos. E com as maiores oportunidades de estudo surgiu uma diversidade de objetivos entre os alunos do nível superior. Com mais escolas e mais gente dentro delas, foi possível perceber que nem todos tinham a mesma perspectiva do que faziam ali, pois não foram levados pelos mesmos valores. Abro espaço para uma pequena observação: justiça seja feita, os empresários do ensino naquele momento sabiam perfeitamente o que estavam fazendo ao se voltar para essa população que não encontrava espaço nas escolas então existentes. Seja pela estabilidade econômica, seja pelos critérios de abertura e ingresso nas instituições, o fato é que para uma boa parcela da população a educação superior deixou de ser uma possibilidade remota. E em um país marcado por tantas desigualdades e carências, foi oferecida a preços módicos a oportunidade de diferenciação, o prestígio social conferido pelo diploma.

Olhando a partir do outro lado do balcão, porém, cabe perguntar: será esse o propósito da educação superior, aproveitar uma oportunidade de negócios, engordar estatísticas oficiais e, de quebra, permitir que mais gente possa ter um diploma? Qual é a demanda atendida por esse crescimento da população universitária? Que respondam os milhares de recém formados que não conseguem aprovação nos exames da OAB, por exemplo. Fecho parêntesis e retomo o assunto de onde parei: a sala de aula acolhe projetos pessoais totalmente distintos entre si.

O curso superior é um fim para alguns, mais uma etapa para outros e uma expectativa de futuro para outro tanto de gente. Assim sendo, se dentro da sala os alunos não falam todos a mesma língua, como está o professor nesse processo?

Quando comecei a trabalhar como professor, observava alunos que liam bastante, alguns que perguntavam mais que outros, que tinham notas melhores, enfim, que constituíam a parcela que se diferenciava em relação ao grupo que começava o ano. E dessa maneira a escola nos colocava um conjunto de obrigações como professores: além da rotina de assiduidade e pontualidade, a necessidade de dar conta dessa diferença, acompanhando de perto aqueles que não seguiam no ritmo da maioria.

Esse quadro começou a mudar quando a figura do cliente passou a freqüentar nossas escolas. Pouco a pouco o rendimento acadêmico deixou de ser algo tão discutido nas reuniões, é verdade que algumas grades até se modificaram, foram otimizadas, cursos tiveram sua carga horária reduzida, adequando-se às possibilidades para as novas instituições de ensino. Mas as reuniões já não eram mais as mesmas, pois a contenção da inadimplência, a necessidade de receita passou a ser mais discutida que o progresso dos alunos em relação aos conteúdos dados em sala.

Com isso, mudaram um pouco as exigências para o lado do professor. De forma geral, a gente nota uma diminuição na importância da formação acadêmica para o trabalho em sala de aula. Enaltecendo o famoso “mercado”, o discurso mais up to date sugere ao professor o recurso à “outras habilidades” capazes de desenvolver “novas competências” no aluno, desculpe, cliente! Associado ao uso de novas ferramentas em sala de aula, chegamos ao reino da fantasia, conduzidos pela tecnologia digital. Saltamos do retroprojetor ao datashow, das fotocópias aos cursos “apostilados” e, cada vez mais rápido, caminhamos em direção ao que o passado recente teve de pior em educação. Alguns elementos surgidos a margem da expansão do sistema de ensino são atualizados e disseminam como novidades. Falando em português claro: as salas de aula lotadas que caracterizaram os pré-vestibulares nos anos 70, são o padrão de boa parte das IES (Instituições de Ensino Superior). E o que dizer então da padronização do material didático? Ao invés do incentivo à leitura, as apostilas, seguindo a moda dos mesmos cursinhos. Algumas vezes esse nível de excelência em educação é alcançado com a distribuição de resumos de aulas.

Daí que devemos ficar satisfeitos quando nos fazem perguntas depois de uma exposição, pois é uma situação nos faze lembrar o tempo em que a sala de aula era um ambiente onde se buscava alguma reflexão, fruto de esforço, de sacrifício, em suma, de trabalho intelectual; um lugar, portanto, onde não passava pela cabeça de alguém perguntar “pra que serve isso, professor?”. Não havia dúvida acerca do motivo pelo qual estavam todos ali.

Novas pessoas, novos materiais, novas exigências. Dessa forma, deixou de ser incomum a busca quase que obsessiva pela satisfação da clientela. E aquilo que era piada ganhou forma, consistência passou a ameaçar o trabalho docente: uma das percepções acerca dessa “democratização” do ensino superior é a de que o professor é aquele que está pronto para atrapalhar a transação entre a escola e seus alunos. Com isso, o cliente foi ampliando sua importância o aluno foi ficando em segundo plano e o professor... Bem, o professor passou a ser contabilizado como um custo para a instituição. E assim se completa um circuito: onde mais freqüente é a figura do cliente, menos presentes são os alunos e totalmente dispensável, posto que desprovido de sentido, é o papel do professor.

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